quarta-feira, 30 de março de 2011

O Estado Pós-Social

Depois dos textos dos meus colegas acerca das vantagens do “Sistema Administrativo Francês”, apresento o último capítulo da nossa apresentação, referente ao Estado Pós-Social. Optei por escrever um texto que compreendesse o panorama geral da situação actual, na medida em que as diferenças entre os sistemas vão-se esbatendo ao longo do tempo. A partir da década de 70, assiste-se ao esgotamento do Estado Social, tendo contribuído factores de diversa ordem: económica, social, política. O modelo económico Keynesiano, que havia inspirado a doutrina económica das décadas anteriores, torna-se ineficaz, fruto do engrandecimento e da excessiva burocratização do Estado (um aparelho “pesado e moroso”). Para além disso, existe uma desproporção considerável entre as contribuições dos indivíduos e as prestações recebidas do Estado, sendo que o Estado cede frequentemente a situações de “corrupção e compadrio”. Finalmente, não se deve esquecer a desideologização dos cidadãos (cada vez mais alheios aos fenómenos de natureza política), bem como ao aparecimento de novas preocupações (as ambientais, por exemplo). Pelo que se demonstrou, era urgente renovar-se aquela concepção de Estado-Prestador. Não se trata de uma verdadeira morte do Estado, mas do aparecimento de um novo modelo da Administração, comummente designado de Infra-Estrutural, Prospectivo ou Planificador. Ligada a esta concepção, surge um aparente paradoxo entre a afirmação do valor do indivíduo e a necessidade de o proteger face ao poder, e, como refere Parejo Afonso, “a insistência em valores de solidariedade social”, que envolvem a “cobertura colectiva de riscos”, bem como a resolução colectiva de “velhos e novos problemas sociais com o objectivo de justiça social”. Face a esta situação, como procurou a Administração resolver esta questão? Primeiro, através da “adaptação das estruturas e modelos de organização administrativos”: ao Estado deixa de pertencer o monopólio da prossecução do interesse público, alargando a colaboração a privados e grupos sociais. Segundo, e como consequência do que se afirmou supra, devolve-se aos indivíduos a importância primordial nas suas relações com a Administração. São os direitos dos particulares o centro da relação entre estes e a Administração, renovando esta o controlo jurisdicional de “tutela efectiva e protecção integral” daqueles direitos (vejam-se, por exemplo, os artigos 211º e ss. e 268º, nº4 e 5 CRP, que consubstanciam, na Constituição, esta nova acepção de Estado). Na prática, a actuação da Administração desenvolve-se em dois planos, que partilham a mesma consequência: a complexificação da sua actuação ultrapassando os cânones tradicionais, não se incluindo nem na Administração agressiva nem na prestadora. Se, por um lado, a Administração recorre a actos genéricos, de carácter geral (como as decisões-plano), por outro, assiste-se à proliferação de actos individuais, cujo alcance não se resume aos indivíduos a eles vinculados, mas também a terceiros não envolvidos directamente naquela relação jurídica. É o que acontece, por hipótese, numa autorização de construção de uma fábrica (cujos efeitos se prolongarão para os habitantes da região, não se confinando ao proprietário e à sua relação jurídica com a Administração). Assim sendo, podemos afirmar que os instrumentos colocados à disposição do Estado revelam a preocupação de agir de acordo com uma ponderação “que melhor salvaguarde os direitos subjectivos e os interesses em presença”. É esta procura de “instrumentos novos” que se traduz na função prospectiva do Estado. Feita uma primeira análise da situação actual da Administração, consideramos importante caracterizar, de forma breve, o Estado Pós-Social (seguindo, neste ponto, a enumeração proposta por Vasco Pereira da Silva na obra “Em busca do acto administrativo perdido”. Um aspecto fundamental hoje é a multilateralidade. Significa que a actuação da Administração projecta-se para além da relação bilateral entre órgãos decisores e privados, abrangendo outros sujeitos. Não só o Estado, como se exemplificou anteriormente, deve ponderar os interesses de terceiros quando toma uma decisão individual, dada a repercussão que esta pode ter na esfera jurídica de outros sujeitos, como deve acautelar os interesses dos indivíduos aquando da sua actuação no âmbito da direcção da economia (é o caso, como diz o autor, do aumento da taxa de reserva obrigatória no caso dos bancos, na medida em que essa decisão não afectará apenas aquelas entidades, mas também os próprios particulares). Logo, é legítimo apelidar este conjunto de formas de actuação “heterogéneas” (porquanto envolvem medidas de carácter público e privado, unilaterais e negociais) como “actuação administrativa informal”. No fundo, como sustenta Brohm, a diferença em relação à Administração agressiva e prestadora é a da “multilateralidade” da Administração de Infra-estruturas. E é esta nova atitude que permite a intersecção da actuação do Estado com novas áreas do Direito Público (por exemplo, o Direito Social e da Saúde). Uma outra característica é a necessidade de alargamento da protecção jurídica subjectiva perante a Administração. Destarte, de modo a salvaguardar as posições jurídicas de terceiros, alarga-se a ideia de direito subjectivo (numa linha subjectivista) ou defende-se a tutela de interesses difusos (corrente objectivista). No entanto, tendo em consideração que esta querela foi aprofundada por outros colegas, remetemos o esclarecimento para os seus textos (aliás, bastante elucidativos!) sobre o assunto. A Administração, em consonância com o período transacto, vai pautar a sua actuação pelo estável e prolongado relacionamento com os privados, não se esgotando numa acção única. Pelo contrário, intensifica-se o carácter duradouro das relações administrativas, como prova (neste ponto utilizamos o exemplo de Nigro) o Direito do Urbanismo, onde o nexo existente entre o plano urbanístico e a licença de construção implica que a posição do particular em relação à licença se encontre “pré-determinada”, antecipada e duradouramente, pelos actos de planificação. Por último, sublinhando a característica da multilateralidade, nota-se um esbatimento da diferenciação entre meios de actuação genéricos e individuais, na medida em que, quer os planos-gerais quer as medidas singulares não se associam facilmente às clássicas formas de actuação da Administração: os primeiros, porque, voltando a Brohm, constituem um fim a atingir num processo constitutivo, cuja prossecução permite um conjunto determinado de instrumentos à sua escolha; as segundas, já que a dimensão individual é hoje ultrapassada, como se explicou, pelo alargamento da abrangência do acto a outros particulares, terceiros na relação jurídica. Para finalizar, uma palavra acerca do Contencioso Administrativo neste período. Em rigor, dever-se-ia falar em dois sub-períodos: o da Constitucionalização e o da Europeização. No que respeita ao primeiro, destacamos dois momentos históricos – a constitucionalização de uma Justiça Administrativa (“jurisdicionalizada e subjectiva”, como refere Pereira da Silva n’ “O Contencioso Administrativo no divã da psicanálise”) pela Constituição de Bona de 1947 na Alemanha, antecipando-se assim aos demais países europeus (uma mudança marcada, entendemos, pela necessidade de romper com o passado totalitário, protegendo os direitos subjectivos dos indivíduos na sua relação com o Estado. Num segundo momento histórico, importa salientar o caso francês que já impunha à Administração o respeito pelas leis. Todavia, como refere o autor d’ “O contencioso…”, somente nos anos 80 é que se vai assistir a decisões do Tribunal Constitucional no sentido de garantir explicitamente as garantias subjectivas dos indivíduos. No que tange ao segundo sub-período, o da Europeização, pode dizer-se que existe uma dupla consequência deste fenómeno: por um lado, uma dependência Administrativa do Direito Europeu, na medida em que só pode ser concretizado através de normas e instituições de Direito Administrativo ao nível estadual, de cada um dos países; por outro, ocorre uma dependência europeia do Direito Administrativo, através da aproximação entre os ordenamentos jurídicos e sistemas nacionais, sob a égide de um direito único no espaço europeu. Assim terminamos esta exposição sobre o Estado Pós-Social e as suas diferenças em relação aos períodos anteriores. Todavia, deve-se atentar neste ponto: o Direito Administrativo, como qualquer ramo do Direito, vai sofrendo alterações no decurso do tempo. Logo, vivendo numa altura de constantes mudanças, não é insensato alertar para a possibilidade de, num futuro próximo, assistirmos a mais mutações na forma de actuar da Administração, bem como na sua relação com os particulares!

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