quinta-feira, 31 de março de 2011

O dever de boa administração e o direito a uma boa administração

A análise do “dever de boa administração” não está, nem pode estar, dissociada do princípio da prossecução do interesse público. E isto porque, o referido “dever de boa administração”, antes de mais nada, se impõe à Administração, quando esta prossegue tudo quanto se considere “interesse público”.

Dito isto, é conveniente começar por compreender o alcance do princípio da prossecução do interesse público, consagrado no nº1 do art.º266º da Constituição da República Portuguesa: «A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos».

Na tentativa de esclarecer o que se entende por “interesse público”, podemos dizer que ele constitui um elemento teleológico que determina a acção administrativa e, por isso, corresponde à finalidade dessa acção. Podemos encontrá-lo definido na Constituição ou na lei ordinária, porém é à Administração que, em concreto, compete a sua determinação.

A definição do que seja o “interesse público” não é unívoca. É que se autores como São Tomás de Aquino ou Aristóteles caracterizavam o “interesse público” como algo que ia variando em função da compreensão cultural da comunidade onde se integrava, não tendo, portanto, um conteúdo fixo. Aliás dizia-se que o “interesse público” era «o interesse geral de uma determinada comunidade, o bem-comum» e o “bem-comum” corresponderia «àquilo que fosse necessário para que os homens não apenas vivam, mas vivam bem».

Já autores como Jean Rivero consideram necessário acrescentar à ideia de “interesse público” como interesse colectivo, a exigência de que ele satisfaça as necessidades colectivas.

O Professor Freitas do Amaral, tentando densificar ainda mais o conceito de “interesse público”, propõe uma série de “requisitos”.
Para este autor, o “interesse público”é, desde logo, definido, via de regra, pela lei (lei aqui em sentido amplo). Além disso, o “interesse público” tem conteúdo variável, o que hoje é fim de “interesse público”, amanhã pode já não o ser; é, sempre, de prossecução obrigatória pela Administração, isto é, uma vez determinado em concreto, com o contributo interpretativo da Administração Pública, o interesse público tem de ser prosseguido.
É também o “interesse público” que delimita a capacidade jurídica das pessoas colectivas públicas e a competência dos respectivos órgãos e que constitui o motivo determinante de qualquer acto da Administração.
Portanto, considerando que a Administração não pode prosseguir interesses próprios opostos aos interesses colectivos da comunidade, nem quaisquer interesses privados dos titulares dos órgãos que, em cada momento, exercem a actividade administrativa, e admitindo que, como já fico claro, definido que está o “interesse público” ele torna-se de prossecução obrigatória, resta à Administração encontrar as melhores soluções possíveis para o realizar.

É aqui que “entra” o dever de boa administração ou, dito de outra forma, o princípio da eficiência administrativa.

O “dever de boa administração” significa que a Administração Pública tem o dever de procurar as soluções mais ajustadas ao interesse público, seja na perspectiva de meios técnicos, seja na perspectiva de meios financeiros, e, não admira, que o dever de boa administração convoque o, já mencionado, princípio da eficiência administrativa.
Segundo este princípio, os objectivos ou finalidades definidos na lei, isto é, os interesses públicos, devem ser concretizados ao menor custo, em termos de recursos naturais, humanos e financeiros.
Ora este princípio da eficiência está bem patente não apenas no art.º10º do Código do Procedimento Administrativo, quando estabelece que «A Administração Pública deve ser estruturada de modo a aproximar os serviços das populações e de forma não burocratizada, a fim de assegurar a celeridade, a economia e a eficiência das suas decisões», como também na alínea c) do art.º81º da CRP, neste caso a propósito do Sector Público Empresarial.

Se, até agora temo-nos debruçado sobre o “dever de boa administração”, é preciso não esquecer o “direito a uma boa administração” que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia consagra, isto porque, segundo o nº1 do art.º41º, «Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições, órgãos e organismos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável».
Pergunta-se, então, qual a utilidade deste direito se, no nosso ordenamento jurídico, já estava consagrado o “dever de boa administração”?
Com efeito, hoje a Administração Pública, no quadro jurídico em que nos inserimos (quadro do Direito da União Europeia), não pode negligenciar os princípios, as regras, os deveres que, muito para além do Direito interno, lhe são impostos. O preceituado no art.º41º da CDFUE vem acrescentar algo ao que já existia a nível interno.

Para a doutrina clássica, o dever de boa administração era um “dever imperfeito”, isto é, não comportava uma sanção jurisdicional. Vejamos, a título de exemplo, o que sustenta o Professor Marcelo Rebelo de Sousa. Diz o Professor que «a violação do dever de boa administração pode dar lugar à revogação, modificação ou substituição de actos ou regulamentos administrativos pelos órgãos para tal competentes, bem como fundamentar a utilização de meios administrativos de impugnação por partes dos particulares. Pode despoletar o exercício de poderes de intervenção interorgânicos ou intersubjectivos. Pode também ser tomado em consideração para efeitos de classificação de funcionários, designadamente para efeitos de promoção por mérito, bem como para efeitos de responsabilidade disciplinar dos funcionários e agentes públicos e de responsabilidade estatutária dos gestores públicos. Pode ainda relevar para efeitos de determinação da culpa do titular de órgão ou agente na responsabilidade civil contratual e extracontratual da administração pública perante terceiros. (…) pode ainda ter consequências extrajurídicas, por exemplo a responsabilidade política de um concreto órgão administrativo perante um colégio eleitoral ou outro órgão público».
Contudo, quer o Professor Marcelo Rebelo de Sousa quer o Professor Freitas do Amaral admitem que «não é possível ir a tribunal obter a declaração de que determinada solução não era a mais eficiente ou racional do ponto de vista técnico, administrativo ou financeiro, e portanto deve ser anulada: os tribunais só podem pronunciar-se sobre a legalidade das decisões administrativas, e não sobre o mérito dessas decisões».

Sem pôr de parte esta dimensão do “dever de boa administração”, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia veio reconhecer aos particulares: o direito a serem ouvidos antes de, a seu respeito, ser tomada qualquer medida individual que os afecte desfavoravelmente; e ainda, o direito de acesso aos processos que se lhes refiram, no respeito pelos legítimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial. Veio também estabelecer a obrigação, por parte da Administração, de fundamentar as suas decisões, quaisquer que elas sejam. E nisto se traduz o “direito a uma boa administração”.

Mais do que assegurar a eficiência administrativa, mais do que garantir que a Administração faz uma escolha racional dos recursos escassos, importa salvaguardar o interesse dos particulares, daí que, nos termos do nº3 do art.º41º da CDFUE, se consagre que «Todas as pessoas têm direito à reparação, por parte da União, dos danos causados pelas suas instituições ou pelos seus agentes no exercício das respectivas funções, de acordo com os princípios gerais comuns às legislações dos Estados-Membros».

Mais do que um dever é um direito!!

1 comentário:

  1. Parece-me que o dever de boa Administração realmente corresponde a um direito dos particulares em relação à própria Administração: de outra maneira nem faria sentido que estivesse consagrado na Carta referida. E realmente a Administração parece estar sujeito ao "bom e correcto" cumprimento do interesse público. Este dever parece realmente englobar duas dimensões, a legalidade e o mérito. A legalidade está comprovadíssima, seja através do procedimento administrativo, seja através do processo, ambos tutelados pelo quase mais que fundamental princípio da legalidade a que a Administração está subordinada. Quanto à segunda dimensão do dever de que falamos parece-me que os Profs. Freitas do Amaral e Rebelo de Sousa têem uma posição bastante realista sobre a questão do mérito. Será que este princípio da eficiência administrativa, este dever por parte da Administração de agir eficientemente e de forma célere, tem assim tanto alcance prático (leia-se jurisdicional)? será que tem algum? é verdade que a Carta dos Direitos Fundamentais estabelece o direito dos particulares a uma actividade lesiva por parte da Administração. Todavia não parece de facto que esta eficiência seja mais do que um princípio com alcance puramente teórico, com um pouco até de esóterico, tendo em conta que dificilmente se encontra alguém ou algo que possa avaliar o mérito e eficiência de determinado acto da Administração do que o próprio órgão a quem compete esse acto e que a ela pertence!

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