domingo, 22 de maio de 2011

Direito Administrativo Europeu e Transparente

Das previsões constantes do Memorando de Entendimento acordado entre o Estado Português e a Troika, relativo às condições de fornecimento de assistência financeira a Portugal, encontram-se diversas disposições quanto ao domínio da contratação pública. Na sua maioria, prevêem um relevante impacto no Código dos Contratos Públicos (CCP - adotado pelo Decreto-Lei n.º 17/2008, de 29 de janeiro) em vigor desde 29 de julho de 2008. As medidas que o Estado português se obrigou a tomar visam, mais concretamente, a concretizar a consonância do enquadramento legal em matéria de contratação pública com o previsto pelas novas fontes europeias de contencioso administrativo, que serão, neste caso, as Diretivas comunitárias relativas a essa matéria (2004/17/CE e 2004/18/CE).

As alterações previstas ao CCP referem-se ao seu âmbito de aplicação subjetivo (art. 2º - entidades adjudicantes), ao regime de tramitação procedimental do ajuste direto, ao regime consagrado quanto a erros e omissões e trabalhos a mais, à relação entre a adjudicação e o procedimento pré-contratual referido supra, à questão da responsabilização financeira dos administradores das entidades adjudicantes, ao combate de práticas adjudicatórias ilícitas através de uma fiscalização prévia dos contratos públicos, à modernização do Portal dos Contratos Públicos e, por fim, à modificação de uma das peças dos procedimentos, os cadernos de encargos (cujo regime vem regulado no art. 42º). Cada uma destas medidas visa, em última análise, o aumento da transparência da contratação pública (prevista no n.º 4 do art. 1º do CCP) e, principalmente, assegurar a conformidade com o disposto nas Diretivas da União Europeia. Antes de procedermos a uma análise mais completa do que cada uma das propostas incorpora, há que consolidar a legitimidade e necessidade da harmonização do Direito Administrativo português com o Direito da União Europeia.

Adotando a ideia defendida por CASSESE, com a criação de um “novo” processo administrativo europeu, a interpenetração da administração europeia com as administrações nacionais dá origem a uma “integração normativa e, sucessivamente, integração administrativa do ordenamento nacional no europeu”. A União Europeia de hoje, na sua qualidade de ordem jurídica autónoma, impõe, portanto, a conjugação das suas normas com as fontes nacionais, de forma a efetivar a prossecução de políticas públicas somente através das administrações dos Estados-membros, que “assim são ‘transformadas’ em administrações europeias”. (1)

Hoje, são muitas as fontes de Direito Administrativo Europeu, mas privilegia-se a forma de Diretivas que tem a seu cargo estabelecer um regime comum de contratação pública, tanto a nível substantivo, como de procedimento e de processo. As Diretivas mais relevantes (já referidas no primeiro parágrafo deste texto) foram transpostas para a ordem interna através do Código dos Contratos Públicos e é à análise de certas questões no seu âmbito que vamos agora proceder.

O art. 2º do CCP constitui a previsão normativa do elenco das entidades adjudicantes, ou seja, que podem celebrar contratos públicos [“contratos a título oneroso, celebrados por escrito entre um ou mais operadores económicos e uma ou mais entidades adjudicantes, que têm por objetivo a execução de obras, o fornecimento de produtos ou a prestação de serviços na acepção da presente directiva” - art. 1º, n.º 2, al. a) da Diretiva 2004/18].  Na al. e) do n.º 1 do art. 2º do CCP, excetuam-se as fundações públicas previstas na Lei n.º 62/2007, de 10 de setembro, que correspondem às instituições de ensino superior que revestem essa natureza. Esta alteração do CCP foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 278/2009, de 2 de outubro e dispõe, claramente, que os estabelecimentos de ensino superior que revistam a forma e a natureza de fundações públicas não são entidades adjudicantes, mesmo que se verifiquem os dois requisitos cumulativos enunciados na al. a) do n.º 2 do art. 2º do CCP, dos quais depende a designação de certa pessoa como tal: ter sido criada especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem caráter industrial ou comercial e manter um vínculo de subordinação ao setor público administrativo (através do financiamento maioritário, do controlo de gestão ou do poder de designação da maioria dos titulares dos seus órgãos sociais). 

No entanto, decorre da Lei n.º 62/2007 (art. 129º, n.os 1 a 4) que uma das condições para a concessão da natureza fundacional pública às instituições de ensino superior é, precisamente, aquela que permite afastar a qualificação da instituição em causa como entidade adjudicante: o preenchimento do critério dos 50%. Isto é, para que a uma instituição do ensino superior seja atribuída a natureza de fundação pública, esta tem que provar a capacidade de assegurar um montante de receitas próprias superior a 50% do total das suas despesas, o que invalida o critério imposto pela Diretiva relativo ao financiamento maioritário por parte de um ente do setor público administrativo. 

Ora, esse regime tem que ser eliminado porque está em total contradição com a norma europeia e, por força do princípio do primado do Direito da União, em caso de conflito entre uma norma da União Europeia e uma norma nacional de Direito ordinário, o Tribunal de Justiça, na sua visão “monista e incondicional” deste, defende que prevalece a primeira. O primado sobre o Direito ordinário interno é uma construção do Tribunal e o princípio foi referido, pela primeira vez, no acórdão Costa/E.N.E.L. (Acórdão do Tribunal de Justiça de 15 de julho de 1964 - Processo 6/64 Costa contra E.N.E.L.); foi geralmente acolhido, pela doutrina e pelos tribunais dos Estados-membros, como um imperativo imprescindível. Na questão exposta, há um agravamento porque a Diretiva foi, efetivamente, transposta o que, na sequência do n.º 4 do art. 8º da CRP, permite aceitar a premissa do Tribunal de Justiça de que “as normas comunitárias tornam inaplicáveis de pleno direito as normas contrárias decretadas pelos Estados-membros, sejam previgentes ou subsequentes à sua formação”. (2)

Importa ainda referir que do princípio da cooperação leal no quadro das relações entre a União Europeia e os Estados-membros (que se encontra implicitamente afirmado no art. 4º do Tratado da União Europeia) decorre que estes últimos devem fazer o necessário para executarem as obrigações para eles decorrentes dos Tratados e que em nada devem contribuir para o prejuízo da União. Destes argumentos nasceu o princípio da interpretação conforme, afirmado primeiramente no acórdão Von Colson (Acórdão do Tribunal de Justiça de 10 de abril de 1984 - Processo 14/83 Von Colson e Kamann contra Land Nordrhein-Westfalen). A consagração deste princípio implica que a lei que transpõe uma diretiva deve ser interpretada à luz e conforme o texto e finalidade da mesma, como meio de efetivação do respeito do Estado-membro pelo Direito da União Europeia.

Assim, as instituições de ensino superior que tenham a natureza de fundação pública e que preencham os requisitos da al. a) do n.º 2 do art. 2º do CCP, a qual corresponde ao n.º 9 do art. 1º da Diretiva 2004/18 são obrigadas a adotar as regras de contratação pública sempre que celebrem os contratos enunciados no art. 6º do CCP.

Quanto ao ajuste direto, este corporiza um dos procedimentos suscetíveis de adoção pelas entidades adjudicantes para a formação de contratos [al. a), n.º 1 do art. 16º do CCP] e traduz-se num “procedimento em que a entidade adjudicante convida directamente uma ou várias entidades à sua escolha a apresentar proposta, podendo com elas negociar aspectos da execução do contrato a celebrar” (art. 112º, CCP) . Está consagrado na al. a) do art. 20º do CCP que, quando a entidade adjudicante seja o Banco de Portugal ou uma das referidas no n.º 2 do art. 2º do mesmo diploma legal, a escolha o ajuste direto só permite a celebração de contratos de valor inferior ao referido na al. b), n.º 7 da Diretiva 18/2004. No entanto, a 1 de janeiro de 2010, entrou em vigor o Regulamento n.º 1177/2009 da Comissão Europeia, de 30 de novembro que fixou novos limiares (mais baixos) de contratação e, portanto, o limiar é, atualmente, de 193 000 €.

Decorre da característica de aplicabilidade direta atribuída aos regulamentos da União Europeia que estes não carecem de uma norma de transposição para o direito interno, dado que são automaticamente incorporados no ordenamento jurídico dos Estados-membros e, portanto, não necessitam de receção por um ato nacional (como sustenta o art. 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia: “O regulamento (...) É obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados-Membros.”

Apesar disso, o Decreto-Lei n.º 34/2009, de 6 de fevereiro, que veio a suspender, em razão da “crise económica e financeira que se instalou nos últimos meses” algumas das regras disciplinadoras introduzidas pelo CCP continua em vigor.

Este diploma estabelece (n.º 1, art. 1º) “medidas excepcionais de contratação pública aplicáveis aos procedimentos de concurso limitado por prévia qualificação e de ajuste directo destinados à formação de contratos de empreitada de obras públicas, de concessão de obras públicas, de locação ou aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços, necessários para a concretização de medidas” nos “eixos prioritários” de “modernização do parque escolar”, “energias renováveis, eficiência energética e transporte de energia”, “modernização da infra-estrutura tecnológica (...)” “reabilitação urbana”. As referidas medidas traduzem-se na redução de certos prazos. No que diz respeito aos procedimentos de concurso limitado por prévia qualificação (art. 3º), o prazo de apresentação de candidaturas de quinze dias foi reduzido para dez, aplicando-se o mesmo regime ao procedimento de decisão (art. 4º); o prazo da audição prévia dos candidatos e concorrentes é, nos termos dos art. 185º e 147º do CCP (respetivamente), não inferior a cinco dias, mas foi reduzido para três (art. 7º do Dec.-Lei). Uma várias alterações mais críticas introduzidas pelo Decreto-Lei prende-se com o aumento exponencial dos valores máximos dos contratos que permitem a escolha do procedimento de ajuste direto independentemente dos critérios materiais (art. 5º) para 2 000 000 €, enquanto que, de acordo com o art. 19º do CCP, o valor dos contratos pode ser inferior a 150 000 € ou, no máximo, a 1 000 000 €, quando se trate das entidades referidas no n.º 2 do art. 2º ou do Banco de Portugal. 

Assim, vemos que o ajuste direto, apesar das limitações impostas pelas Diretivas, pelo Regulamento e pelo próprio CCP, pode ser adotado sob se o tipo de contrato o exigir ou autorizar. Desta forma, para garantir a concordância do Direito português com os diplomas comunitários, a contratação por ajuste direto será limitada à forma e aos limiares previstos nas diretivas comunitárias e serão, portanto, eliminadas todas as exceções criadas nos últimos anos para a permissão da mesma fora do âmbito previsto pela União.

Estão também previstas outras alterações ao CCP relacionadas com o ajuste direto, mas no campo das omissões (art. 376º) e trabalhos a mais (art. 370º). Estando em questão conceitos e procedimentos técnicos dos contratos de empreitada, ficar-nos-emos pela anotação de que as modificações a realizar são imperativas pela razão enunciada supra: a desconformidade com as normas da União na matéria em causa.

Foi também imposto pela Troika que os órgãos nacionais competentes tinham que garantir a fiscalização prévia dos contratos públicos, precisamente para evitar práticas adjudicatóricas ilícitas, nomeadamente em matéria de trabalhos a mais. O órgão para tal competente é o Tribunal de Contas,  que, nas palavras do seu atual Presidente, o Juiz-Conselheiro Guilherme d’Oliveira Martins, “é garante do rigor e da disciplina financeira e orçamental, sentinela activa do bom uso dos recursos públicos e dos dinheiros dos contribuintes, agente de uma pedagogia persistente para que o aperfeiçoamento das práticas se torne realidade e guarda avançada da responsabilização dos agentes do Estado”

Este divide-se em cinco câmaras; duas secções regionais (uma na Região Autónoma dos Açores e outra na Região Autónoma da Madeira) e três nacionais. A primeira das câmaras nacionais destina-se, precisamente, à fiscalização prévia e a concessão de “vistos”. Como forma de evitar a fuga ao controlo prévio deste Tribunal, o legislador, ao introduzir na Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas (Lei n.º 98/97) as alterações da Lei n.º 48/2006, de 29 de agosto, criou situações de obrigatoriedade de fiscalização prévia, cujo objetivo principal é, portanto, prevenir os atos e contratos ilegais.

Quanto à necessidade de responsabilização financeira dos administradores das entidades adjudicatórias por incumprimento dos contratos públicos, quando esteja em causa, nos termos do art. 59º da LOPTC, “desvio de dinheiros ou outros valores e ainda de pagamentos indevidos, pode o Tribunal de Contas condenar o responsável a repor as importâncias abrangidas pela infracção, sem prejuízo de qualquer outro tipo de responsabilidade em que o mesmo possa incorrer”. A  responsabilização é pessoal, ou seja, recai sobre a pessoa a quem o facto ilícito é imputável e, subsidiariamente, sobre os membros dos órgãos de gestão administrativa e financeira ou equiparados (nos termos do art. 62º).

Por fim, outras alterações a efetuar no âmbito da contratação pública (como a modernização do Portal dos Contratos Públicos e a modificação do art. 42º do CCP, relativo ao caderno de encargos na tramitação de contratos de valor igual ou superior a 25 ooo ooo €) visam o aumento da transparência em todos os procedimentos públicos. Todas as medidas analisadas convergem, assim, para um objetivo comum: a aproximação das formas contratuais no exercício da função administrativo e a sua consequente unidade de tratamento, reconhece-se, deste modo, a necessidade de estabelecimento de regras jurídicas comuns aplicáveis a todos os países europeus. 

Com a prossecução do objetivo de implementação de um mercado comum e, subsequentemente, de uma união económica, monetária e, em última análise, política, tornou-se cada vez mais nítida a necessidade da consagração de regras comuns de contratação administrativa. Isto porque uma contratação pública unificada, precisamente pelo grande importância que ainda detém no setor económico da União, é capaz de efetivar com sucesso o princípio da concorrência leal, ou seja, evitar que nos Estados-membros sejam mantidas ou fomentadas práticas restritivas ou prejudiciais para o alcance do objetivo da união económica e monetária.

Aquando do desenvolvimento protagonizado pelo Tribunal de Justiça no acórdão Int. Handelsgeselshaft (Acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de dezembro de 1970 - Processo 11/70 Internationale Handelsgeselschaft mbH contra Einfuhr-und Vorratsstelle für Getreide und Futtermitte), o alcance do princípio do primado abrange todo o Direito nacional, incluindo o Direito constitucional e, portanto, também o administrativo; complementa-se, assim a sustentabilidade da ideia de já não ser possível “que os administradores continuem a ignorar os fenómenos europeus, como se eles lhes fossem ‘exteriores’”. (3)

 Apesar de tudo, existem ainda questões por resolver no âmbito do CCP, especialmente no que se refere, no n.º 1 do art. 1º, à distinção entre contratos administrativos e outros contratos da administração. Concordamos, neste ponto e dados os argumentos apresentados de inevitável convergência da regulação da contratação pública para um núcleo europeu, com a doutrina que defende o fim da manutenção dessa “dualidade esquizofrénica originária” (nas palavras do Prof. Doutor Vasco Pereira da Silva). Hoje, já se perdeu o significado histórico da distinção, uma vez que, nos ensinamentos do Senhor Professor, foi estabelecido “um regime (substantivo e procedimental) comum a todos os contratos celebrados pela administração ou correspondentes ao exercício da função administrativa, da mesma forma como tinha já antes procedido à eliminação de tal dualidade do contencioso administrativo, com a reforma de 2002/2004.”

É certo que, em última análise, tudo dependerá da concretização que for efetivamente dada aos compromissos assumidos pelo governo português, mas, prima facie, as alterações do CCP aqui analisadas mostram-se capazes de materializar o princípio da transparência expressamente consagrado no n.º 4 do art. 1º do CCP, decorrente do dever de uma boa administração.


(1) SILVA, Vasco Pereira da - O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise - Ensaio sobre as acções no Novo Processo Administrativo. Ed. 2ª. Coimbra: Almedina, 2009. p. 108
(2) MIRANDA, Jorge, MEDEIROS, Rui - Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I. 2ª Ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. p. 169
(3) Vasco Pereira da Silva (2009).  p. 112

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