quarta-feira, 6 de abril de 2011

O dever de boa administração num plano europeu e literário

I - A doutrina tem discutido o significado do dever de boa administração e tem concluído, como referiu a minha colega Inês Correia, pelo esvaziamento do conceito, na medida em que os princípios que o compõem têm vindo a ser autonomizados. Ademais, diz-se tratar-se de um "dever jurídico imperfeito", de âmbito "intra-administrativo". No entanto, entendo que se deve interpretar aquele dever à luz dos princípios que decorrem de normas europeias, nomeadamente o artigo 41º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Se o fizermos, não só identificamos um conceito que, apesar de composto de vários princípios, não só não desaparece como aqueles princípios se tornam indissociáveis. Finalmente, note-se que este documento tem a mesma força legal das normas dos Tratados da União Europeia, segundo o Tratado de Lisboa, vinculando os Estados-Membros ao seu cumprimento (artigo 51º da mesma Carta), o que ilustra bem o âmbito de aplicação daquele preceito - não se trata de uma mera aplicação moral do dever de boa administração, mas sim jurídica.

II - E na prática, como é que se aplica este artigo 41º? Recorremos a um exemplo retirado d' "O Castelo" de Franz Kafka, embora sublinhando a ideia de que a aplicação daquele artigo se reporta ao quadro da União Europeia. A narrativa descreve uma Administração excessivamente burocratizada, pesada, asfixiante, materializada na imagem de um castelo situado numa determinada vila. K., personagem principal, fora contratado como agrimensor (profissional que mede e divide propriedades rurais e urbanas) e, chegado à vila, tenta perceber quando, como e em que condições pode exercer o seu trabalho (embora sem sucesso), através de sucessivos requerimentos a entidades administrativas integradas no referido castelo. Nesta metáfora da Administração, o seu processo vai continuamente passando de gabinete em gabinete, de secção em secção, de responsável em responsável, mas a resolução do seu problema permanece insolúvel. Sem dar qualquer explicação, a Administração oferece-lhe um emprego de qualidade menor, para o qual não tinha preparação.

III- Depois de apresentado um exemplo de comportamento da Administração, como é que actuaria o artigo 41º da Carta de forma a resolver o problema do nosso protagonista, K.? O nº1 obriga a que os assuntos sejam tratados dentro de um prazo razoável (para além da forma imparcial e equitativa - será que o castelo procedeu do mesmo modo relativamente a outros particulares?), o que não se verificou no nosso caso. Já o nº2 vem estabelecer o direito a audição do particular antes de ser tomada uma medida a seu respeito, que o afecte desfavoravelmente (K. não foi ouvido antes da atribuição do novo emprego); o direito de acesso aos processos a ele referentes (o que não se verifica, dada a dificuldade em contactar a entidade administrativa responsável pelo seu problema, permanecendo sem resposta); a obrigação de fundamentação de decisões (que não se verifica, já que a Administração age sem qualquer justificação, nem em relação à demora de tomada de uma decisão, nem no que tange à sua decisão de empregar K. noutro local). E poder-se-ia especular se se estaria a prosseguir o interesse público no caso concreto, mediante comparação entre uma hipotética norma legal e uma actuação administrativa desconforme com esta.

É a morosidade e a actuação injustificada da Administração (que se observa pela lentidão como é tratado o assunto de K.) que este direito, do qual resulta um dever para a Administração (o referido dever de boa administração) visa impedir. Assim sendo, estabelece o nº3 o direito à reparação dos danos causados pelas instituições ou agentes no exercício das respectivas funções. Concluindo, é neste direito que assiste a K. que se funda o dever de actuação da Administração de forma célere, proporcional, justa e equitativa.

Sem comentários:

Enviar um comentário